Saturday, September 22, 2007

Comunhão


















Comunhão

Eu quero beber o orvalho das pétalas da sua flor.
Eu quero ver sua flor se abrir na comunhão mágica do amor.
Eu quero sentir a chuva que despenca da sua alma,
entrar em seu pequeno sol, redondo feito hóstia,
onde você me faz caber e me aperta e me acarinha
e me traz pra tão mais perto do que eu sou.
Eu quero navegar nas suas ondas,
rasgar suas águas com meu casco,
mar que me responde e me respinga,
eu que molhado me entrego totalmente a suas marés.
Eu quero suas marés, de lua nova e plenilúnio,
seu movimento que fustiga os corais
e traz à superfície as estrelas e as anêmonas,
eu quero me embrulhar em suas algas
e com elas me cobrir, na verde dança da fertilidade.
Eu quero sua fertilidade, sua dimensão toda de fêmea,
eu quero acolher os estilhaços das explosões
da sua intensidade.
Eu quero que eles me marquem o corpo,
me fustiguem de luz e aturdimento.
E que você se deixe em mim.

Os meus sentimentos















Meus sentimentos não são suspeitos
(e nem assim os sinto).
Meus sentimentos não gostam de viver sob constante escrutínio,
amebas na lente de um microscópio
que quer esquadrinhar minha alma e,
sem saber o que exatamente procura,
se impressiona com o que dela dizem.
Meus sentimentos não são perigosos
(se o fossem eu não estaria vivo),
nem estou a promover uma fogueira
de tudo que de nobre existe em mim.
Eu não vim salvar o mundo do alto de minha branca montaria,
mas eu também não vim para vagar a esmo,
onde alguém um dia pôde pensar em me encontrar.
(Eu não tenho missão alguma
a não ser tentar viver honestamente
o que me foi dado como chance,
e nem eu tenho outra chance além dessa, presente,
como diz presente o aluno na cadeira de eterno estudante.)
Eu sei que tantas coisas eu não sei.
Eu sei que minha arte não vai pagar minhas contas,
mas sempre pagará o preço de estar vivo, e atento, e inteiro.
Eu sou aquele cujo coração não sabe morar em outro peito,
que distraidamente dorme ao relento
e cuja carteira pensaram em bater,
sem nem saber que nela moram apenas notas, papéis,
cartões que não me identificam, talvez fotos,
sempre instantâneos de um passado que é isso – já passou.
Também não sou parte do mundo de excluídos
porque posso ver a vida em brinquedo,
porque posso mijar ao vento,
alcançar a substância do que é feito o nada,
porque posso e quero e devo
conviver com o incomum ruído
de todas as águas de onde brotam todas as sonoras fontes.

(zé eduardo)

Thursday, September 13, 2007

Na poeira de sua rua

Não tenho lar, perdido
No prazer do maravilhamento
Quando por fim eu deverei habitar
Para sempre na poeira
De sua rua.

Fuzuli (poeta turco, 1498-1556)

Sunday, September 09, 2007

13 KM

Treze quilômetros separam teu corpo do meu
e após cento e quarenta e duas esquinas,
poeiras, faróis vermelhos, milhares de transeuntes
e carros depois,
treze quilômetros é daqui às estrelas
se ruas houvesse a nos levar acima.
E as há, e estão em cada teu arfar,
fios das lamparinas coloridas
unindo minaretes de mesquitas
desenhadas em teu colo oriental.
Treze quilômetros é tanto território,
teu corpo trilhado a aprender descaminhos,
passadas a impactar um chão inelutável,
distância a te rebocar ao sentimento mesmo
de onde partistes e onde teu pulsar repousa.

zé eduardo
9/9/2007

Friday, September 07, 2007

Minha namorada

Minha namorada é bonita
Como bichos que surpreendem
Nas beiras das estradas.
Minha namorada
É que nem um destes bichos
Quando dorme,
Numa serenidade surpresa.
Minha namorada tem virtudes
Que ecoam a agitação dos bazares
Onde tudo sempre foi, e continua sendo,
Escrupulosamente exposto.
Ela vem de uma terra chamada oriente
E dos livros e dos jejuns da lua minguante.
Ela vem do céu e dos brocados e passamanarias,
Palavra aliás que nem sei o que bem quer dizer
Mas que é assim como ela me roça a pele,
Sussurrando tão baixo um nada em seu sonho.
Minha namorada mora comigo.

Zé Eduardo

7/9/2007

Tuesday, September 04, 2007

Dos Três Mal Amados



















O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.


O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.


O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.


O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.


Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.


O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.


O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.


O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.


O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.


O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(João Cabral de Melo Neto)

Saturday, September 01, 2007

Un vestido y un amor


















Te vi
Juntabas margaridas del mantel
Ya sé que te traté bastante mal
No sé si eras un angel o un rubi
O simplemente te vi

Te vi
Saliste entre la gente a saludar
Los astros se rieron otra vez
La llave de Mandala se quebró
O simplemente te vi

Todo lo que diga está de más
Las luces siempre enciendem en el alma
Y cuando me pierdo em la ciudad
Vos ya sabés comprender
Es solo um rato no más
Tendria de llorar o salir a matar
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscava a nadie e te vi

Te vi
Fumaba unos chinos en Madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacías otra cosa que escribir
Y yo simplemente te vi


Me fui
Me voy de vez en cuando a algún lugar
Ya sé, no te hace gracia este país
Tenías un vestido y un amor
Yo simplemente te vi

(Fito Paez)