Saturday, March 31, 2007

Solidão













Eu conheço a solidão dos homens verdadeiramente solitários.
Levanto os olhos sobre a revista
e vejo do outro lado do balcão
o homem que mastiga seu sanduíche
com olhos de quem costumeiramente mira o nada.
Não seu interior, mas o nada mesmo,
a insubstância, a perspectiva da volta
para a casa desabitada
onde não há vida durante todo o restar do dia.
Eu não falo com o homem do sanduíche
e o olhar de todos em redor não se cruzam.
Não são mal educadas as pessoas solitárias,
são amargas, e talvez pouco levem além disso com elas,
um saco de papel marrom com restos
que sempre sobrarão putrefatos na geladeira
fazendo companhia ao leite vencido, porém presente
como um atestado de indisfarçável condição.
À exceção de um esgar de inquietação,
são resignados os seres que partilham
suas miseráveis refeições.
Pode bem ser que nem tristes sejam
porque este sentimento quedou abandonado
junto com tantos outros
como manchetes velhas empilhadas
num canto do quarto de empregada.
Há solitários amarrotados, elegantes, dândis, impecáveis,
escanhoados como bebês ou com pelos
que desleixadamente crescem
como se ao rosto nem pertencessem.
Não importa.
Por todo lado há a marca do olvido
em prédios de apartamentos
que empilham precoces asilos.
Estão à margem e já não recordam do outro lado
e de como a ele chegar, se lembrassem.
Pontas de cigarro queimam nas calçadas.
Não estão mortas mas ninguém mais as fuma.
Logo serão varridas pelo vento e tragadas pelos bueiros
rodando num turbilhão sem nexo.

(zé eduardo)

Tuesday, March 27, 2007

Os Deuses Sabem
















Deus não sabe.
Os deuses sabem.
Nós sabemos.
Inquieta e aflita nave,
Circunavega a atmosfera úmida
E volta ao ponto de partida:
Onde quisemos, queremos, tornaremos a querer.
Seu coração tangencia o mundo,
Mas eu vou estar aqui,
Lar, âncora, lanterna, farol a iluminar as ondas
Que nem da luz natural precisam.
Estarão sempre lá, timidas, revoltas,
Regidas pela lua indecifrável.
E eu a faço concha e pérola,
Intimidade e esplendor ocultos.
Porque Deus não sabe.
Mas os deuses sabem.

(zé eduardo)

Friday, March 23, 2007

Seus Pés no Sofá



















Quando toco nos seus pés e você quase se entrega ao sono,
Eu sei em qual mulher estou tocando.
Roço a mão em sua pele e seus olhos se fecham,
Alheios ao que vive além da intimidade, onde tudo fica tão aquém.
E você se entrega ao que recorda: seiva, polpa, serena e feroz umidade.
É assim que a toco (nos tocamos):
Bárbaros guerreiros desmedidos,
Quadros dependurados nas paredes dos corpos,
Comunhão de signos, arfar de peitos que tentam se esconder
E que conseguem apenas entregar um ao outro o sentimento decifrado.
Impossível ilusão na transparência dos seus olhos,
Na comoção de seus lábios juntos em busca da unidade,
No tanger de um instrumento em busca da perdida harmonia.
Você se revela, nos envolvemos, e seguimos.
(No sofá depois do almoço nós somos solidários.
Mais que isso, cúmplices.
Mais que isso, amantes de desejos quase irreprimíveis.)

..................

Quando minha mão de novo percorre seu ventre,
Tudo está de volta em seu tempo e este tempo é sempre e não se sabe quando.

(Zé Eduardo)

Minha Casa
















Hoje minha casa habita dentro de mim
e eu a levo comigo como um caramujo
que se recolhe no aconchego.
A minha casa não é deserta:
é povoada de seres, ancestrais, mitos, amores.
Na minha casa não me faltam o alimento e a poesia e a música,
que fluem de suas paredes porque são parte dela,
assim como são partes de mim meus braços, minhas pernas,
minhas sobrancelhas arqueadas em pensamentos.
Não, a minha casa não tem paredes.
É generosa, minha casa,
e dá acolhida àqueles que dela se aproximam
com um ramo de flores nas mãos
como mais um tributo a meu jardim.
Minha casa não recebe quem não quero
e nem quem a mim não queira.
É honesta e simples e limpa
como se fosse toda caiada de branco,
e todos retratos nas paredes doces e eternos.
Na minha casa não há tempo, ganho ou perdido.
Há apenas espaço para os movimentos do meu coração.
Em minha casa as pessoas deixam os sapatos à porta
porque gosto que elas pisem em um chão
sem nada de entremeio.
O material de que minha casa é feita é a vida,
que cultivada durará muito além dela mesma.

(zé eduardo)

Thursday, March 22, 2007

New Orleans
















A boca imita um pistom em surdina
na fumaça acre do jazz band.
A esquina é uma tábua de lavar roupa
e uns cinco crioulos dançarinos.

Wednesday, March 21, 2007

Um Curto Poema Para Monet













Dedaleiras, hortênsias, marias-sem-vergonhas,
hibiscos, rosas, papoulas,
no jardim de Monet.
Cheiros, atrações, espécies de bichos que voam,
regaços, fontes translúcidas,
nenúfares, ninfas das águas, pernilongos,
borrachudos fogem dos quadros
e mordem as pernas no museu.

Sunday, March 18, 2007

É Tão Cedo




















É tão cedo, que lá fora
É quase ainda escuro.
Nem os pássaros tateiam a surda madrugada.
O guarda da noite se foi
mas ainda não há quem guarde o dia.
As folhas ficam nas calçadas
alheias a uma brisa
que mal a si mesmo movimenta.
E de tantos sonhos em tantas casas
partem ancestrais, mundos ermos, fantasmas do passado,
toalha em uma mesa no centro de uma sala,
bola de gude, a mãe e o pai mortos,
duas criancas sentadas quietas em um sofá no canto,
sombras invadindo a bruma sem cerimônia.
….

Num piano em uma sala notas querem romper da partitura,
soluços prestes a arrebentar.
Mas não. É tão cedo, que lá fora
tudo ainda continua quase escuro.
Deixem que durmam os corpos largados nos colchões,
lassidão abandonada em branca alvura.
Deixem, assim: os corpos não se tocam,
aqui uma perna se enfia no meio de outras duas,
ali um braço abraça um seio,
mas os corpos não se tocam porque as almas dormem.
Ou melhor, não dormem, apenas restaram ausentes,
e mesmo no amor ficaram agora ausentes
como buraco negro no céu
que traga toda energia
em sua enorme e estelar voracidade.
(Eu durmo só em minha cama.
Algum bicho ruim levou minha amada embora.)

………

Tarda a alvorada em meu peito tardio.

(zé eduardo)

O Enterro do Tocador de Bandoneon














O tocador de bandoneon morreu.
Seu relógio foi empenhado na casa funerária
e o tango cortando o cortejo
crispava as mãos em torno das alças douradas.

Havia trinta e duas pessoas
no enterro do tocador de bandoneon.
E na outra quadra do cemitério
apenas alguns desconhecidos.
O sol sumia em torno dos olhos sincopados.

(zé eduardo_

Friday, March 16, 2007

A Mulher na Distância















Quando teus pelos, eriçados, se enrijecem
Quando atiras teus espinhos em minha carne inesgotável
Quando tua voz crispada toca ouvidos machucados
Eu penso em tua dor tanta
Nos noturnos animais que invadem teu repouso
Eu penso meu Deus de que grota escura brota a água amarga
Que nunca nenhuma sede saciará
Eu penso oh Deus porque minhas mãos não puderam te tocar
E meus olhos apenas viram o que luzia
Sem iluminar o negrume atrás de tuas retinas
E eu sinto esta tristeza de velório
Velas queimando ao lado do corpo, morto e insepulto
E que se extinguirão bem depois
Que o primeiro punhado de terra
Anunciar o doce silêncio do sepulcro.
Eu penso em teu imenso ser crepuscular
Deitado em um horizonte onde um sol estático
Teima para que a noite jamais chegue.

(zé eduardo)

Tuesday, March 13, 2007

Ainda





















Ainda que a luz baixasse oblíqüa
sobre as formas da manhã
que incandescesse avermelhada.
Ainda que nuvens corressem
e nelas víssemos,
feéricas crianças aturdidas,
moças, bolas, elefantes,
pés sinuosos a pisar
o desparelho caminhar dos dias.
Ainda que a terra se abrisse
e tragasse a tudo e junto o livro
que mãos inexatas continuam a escrever.
Ainda que flores brotassem
de terrenos inexatos
e espalhassem seus aromas
no rarefeito ar de uma vida rarefeita,
mesmo tudo isso mal seria
um torto aval para que o tempo prosseguisse.
Ainda que teus lábios me amassem,
e teus olhos, e a doce carne da proximidade,
tua fala amorosa condensada
nas púrpuras palavras do teu sexo.
Ainda que teu seios alvos
despertassem em minha boca,
me convidassem à plenitude
de te saber minha.
Ainda que com teu pulso,
cada segundo mais intenso,
inventasses a coreografia
dos corpos que se bailam,
sôfregos gestos das mãos
em busca do gozo da vida.
Ainda que a ciência se desvanecesse
e tu restasses desnuda
em toda tua intrincada geometria.
Ainda que você trouxesse sempre
os espelhos mesmos
de um caleidoscópio vário.
Ainda que o martelar dos deuses
forjasse a arma que um dia iria me matar,
ainda assim eu te convidaria,
minha trama de tecidos tergiversos,
minha cama de lençóis disparatados,
minha alma de tantas e todas aventuras,
ainda assim eu te convidaria a partilharmos
os destinos que habitam nossas vidas.

(zé eduardo)

Friday, March 09, 2007

Cinza




















Há um cinza uniforme sobre tudo,
poeira sobre a mobília
na casa subitamente abandonada.
As janelas batem com o vento
e a umidade cuida de apodrecer
as coisas com as quais ninguém mais se preocupa,
cuja própria existência quem um dia delas soube se esqueceu.
Todos se foram em silêncio
sem nem deixar qualquer memória.
Há um cinza uniforme sobre a alma
que não sabe mais que corpo habitar.
Há uma cinza uniforme no coração
que bate solitário e sem eco
enquanto um outro coração quer amar
mas olha para o luto e a perda
e não quer tirar as bandagens
para não expor à luz a cicatriz.
Há um cinza uniforme sobre o corpo
que não pode partilhar seus desejos
tenta criar um contato e depara com a refração,
um pedido para que ele, alma e coração
esperem, esperem,
um dia que quem sabe virá,
quem sabe poderá não vir,
desacontecimento rompendo círculos
para tangenciar a vida e espirrar
como cometas espirram
no choque do calor da atmosfera.
Há um cinza uniforme sobre tudo
que o dia cinza reluta em disfarçar.
Há um choro atrás da porta,
um trinco e uma chave,
há um grito sem repercussão.
Há um homem que caminha na chuva e sente frio
e que quer varrer dos ombros
o peso de sua condição.

(Zé Eduardo)

Monday, March 05, 2007

Apelo



















Antes que me digas com teu olhar de dor
que o horizonte tarda enquanto a noite avança em teus sentidos,
antes que me digas com teus lábios trêmulos
que em mim tu não mais te reconheces
e que todo gesto seria agora um acenar de tempos vãos,
antes que me digas com tua voz partida
que em teu ventre tu não mais me acolherás
e que a dor de tanta ausência tu a viverás em teu silêncio,
antes que me digas, alma dilacerada,
que nunca mais partilharemos nossos sonhos,
nossas febres, nossas peles uma em outra benfazejas,
as tristezas dos dias, o riso das noites, o encanto de todas as horas,
antes que me digas, com tua pele crispada,
que não é possível, que o tempo se esgotou nas madrugadas
em que sozinha mergulhastes teus cabelos de minhas mãos ausentes
no teu leito de mim desabitado,
antes que me digas que não mais te saberás minha
deixe eu te dizer quanto te amo.

Sunday, March 04, 2007

É Como se Toda a Poesia se Fosse



















É como se toda a poesia se fosse,
qual barco que esqueceu-se nos sargaços,
névoa onde bóiam fantasias.
Não há ecos, rochedos, e a vista, toldada, nada vê.
As sereias estão além das brumas
e mesmo seu canto não chega
a esta quietude indesejada.
Não há ondas, faróis, horizonte,
Num terreno onde o silêncio reverbera em si mesmo
e morre.
Fogo fátuo que os espíritos guia,
da à nau um caminho nos destroços.
Vento que sopra das cenas tenebrosas,
enfuna esfarrapadas velas para um porto.
Não posso ficar aqui onde ninguém ouve meu canto.
Não quero, trancado em paredes invisíveis,
Ver minha alma definhar como definham
marinheiros nos desertos tombadilhos.
Dai-me uma musa, um sopro que seja,
um alento, um sinal.
Queima o óleo de finita lamparina.
Logo mais tudo será escuridão.
Fulgura, brilho tênue da tristeza,
Transforma-te em archote que mãos cansadas levarão
À terra firme onde um outro eu me aguarda.

Repercute e multiplica, solidão,
para que, todas companheiras,
as vozes que em mim gritam
possam enfim compor uma ode triunfal.

(zé eduardo)

Saturday, March 03, 2007

Cheiro















Estou impregnado por teu cheiro
que não sai de mim quando me lavo,
como sangue sob as unhas nos abatedouros.
(Sombras surrupiam almas que, perdidas,
vagam sem saber da perdição
e julgam ter a dor de ainda existirem.
Tráfego silencioso de lamentos,
névoas dispersas nos barrancos
onde o mundo acaba.)
Estou contaminado por teus olhos,
que não me abandonam quando fecho os meus,
como as marés que seguem para sempre as luas.
(Trevas descem sobre as águas,
ondas sem lembrança de onde um dia houve luz.
Trânsito doloroso dos sinais,
farois que não evitam naufrágios.)
Estou tomado por teus pelos
que não desgrudam de meu corpo
como pétalas que brotam e ficam até a queda,
que não chega nunca.
(Movimento tenso de corpos
aos quais a morte chegou despercebida.)
Te prego nas paredes,
penduro e despenduro teus retratos,
até a hora em que perco tudo e durmo.

Thursday, March 01, 2007

O Sentido das palavras


















O sentido das palavras


Uma garrafa chega à praia com um bilhete dentro.
Há alguém numa ilha, acenando inutilmente
para os navios que passam ao longe,
até por que a salvação já chegou,
tão naturalmente como cocos despencam dos coqueiros.


Uma bala vara a noite e estilhaça uma janela.
Nela se abre um buraco por onde passam vento, frio, realidade.

(zem)