Thursday, October 28, 2010

Poema brasiliense

Parece às vezes que meu coração murmura,
como se entoasse um mantra.
Antes assim, do que gritos,
antes assim do que o pulsar desabalado
de um desatino qual bonde sem condutor.

Tuesday, October 05, 2010

Brasília, 5 de outubro de 2010

Eu poderia com a memória de minhas mãos esculpir seu corpo da pedra.
Eu poderia com minhas mãos criar o fogo de velas que nunca se apagam,
e com o toque ligeiro de suas mãos em minhas costas tentar reconstruir um mundo.
Eu não consigo viver a vida de ilusões perdidas porque elas simplesmente não se perdem.
Eu não posso usar meus óculos escuros de noite,
mas eu também prefiro tropeçar na mobília destas coisas semoventes -
e não posso tratar como pronomes isso tudo,
designações impróprias de atitudes vãs.
Amar pode não ser um verbo intransitivo,
e o conjugo em cada quadra da cidade mágica.
Tem tanta matéria em nós que brilha,
tanta inconsistência destas tardes derretidas.
E estas luzes de memórias partilhadas até nunca mais.

Thursday, July 22, 2010

Quase tudo em você que eu amo

Os sulcos quando você franze a testa.
Tuas mãos.
O bater de cílios que faz ventar a folha de papel onde eu tentei em vão escrever um poema.
Teus pés inertes e incomodados.
Suas mãos que sempre espalham pelas mesas lacres de cigarros, palitos de fósforo e uma tristeza funda vinda de alguém que nem sequer é triste.
Seus lábios que abraçam a beira de um copo.
A gola de seus improvisados agasalhos.
Teu pescoço comprido como um quadro de Modigliani.
Teu olhar comprido como o mundo e além dele.
Tudo que eu não digo.
Tudo que eu não tenho mais como dizer.

Julho 2010

Wednesday, July 21, 2010

O céu de Brasília 2

Porque finalmente as coisas são como são,
Eu deito os olhos nas nuvens e não vejo mais gigantes,
Ursos, rostos de aparência extravagante, ou sonhos bons,
Ou pesadelos.
Eu vejo os aviões singrando um céu claro
E depois baixo os olhos e vejo a coruja na cerca,
E depois adentro os olhos e os recolho,
Porque ando maravilhado,
Porque finalmente as coisas são como são.

Julho 2010

Sunday, May 30, 2010

Dor

Meu corpo ainda dói todas as manhãs,
e me levanto vestindo chinelos
e tateio sempre o caminho das relíquias pisoteadas.
Sincopadamente a vida prossegue
no tango de becos abandonados onde as sombras dançam
neste alheamento dos dias que são sempre quartas-feiras,
terças-feiras, oitavas dedilhadas em teclado que a morte desafinou.
Eu respiro você a cada manhã e a cada respirar,
fumaça espiralando conjeturas,
tudo que nunca mais vai ser,
tudo que eu queria que um dia ainda fosse.

Thursday, May 13, 2010

Outono

Esta melancolia
de bule fervendo e galinhas ciscando no quintal.
Esta triste limitação do tempo
e o jogo com bola de meia no fim da tarde na rua Oscar Freire.
Esta abundância da memória em que eu patino rouco e desatinado,
estas damas-da-noite cujo cheiro busco em todos os cheiros.
Este túnel de infindo comprimento,
esta luz baça de lamparina pendurada na porta,
a poeira que a vassoura varre que paira no ar como uma neve.
Bafejo no espelho e escrevo nele com o dedo que eu te amo,
sopro o ar frio esta fumaça de inverno precoce,
este precoce encanecer de tudo.

13.5.2010

Wednesday, March 03, 2010

A vida

A vida, apenas e afinal de contas,
vida tão comezinha e miserável,
esta conta que não fecha nunca,
este passar a régua em retas inúteis.
A vida, trêfega luz,
O vai e vem do balanço,
Minha tia me joga para cima e tudo é regozijo.
A vida, este armazém de memórias,
Repositório de trastes,
Traças, poeira, este cheiro de nunca mais.

Wednesday, February 17, 2010

Um sangue, outro

Se cada um de mim se fatiasse na balança
Eu nem mesmo saberia jamais de onde viria o maior peso.
Se um dia eu pudesse morrer de tudo
Eu certamente de tudo morreria.
Parece que um dia eu perdi meu passo
E nada há mais que me console.
Estou feito balão solto no ar em festa de criança,
A desatinar de tudo o que faz sentido.
Meu coração não para de sangrar, deve ser de quando eu nasci.

Friday, February 12, 2010

Coisas que não existem

A vida linear não existe.
Não existe nada linear.
Nem uma régua,
Ou a idéia que tenhamos dela.
Nem molduras de quadros, tamanhos de livros,
Prumos, telhados, marcos supostamente
Bem postados nas estradas,
Virgindades, finais de filmes onde
Tudo acaba bem, ou mal.
Só existe o sangue
Cuja pulsação varia como
Os marcadores em aparelhos de hospital.
Nem mapas que tentam tornar plana uma terra
Que padece de sua circularidade.
Pulando eternamente fora de suas rotas
Partículas ínfimas geram luz
Como a prova única de estarmos vivos.
Aí estão nossas esperanças,
lágrimas que brotam de uma tão simples percepção
Que nem custa mas também nada vale explicar.
O sal existe.
São cristais, pedras pequenas, sabores,
Sem o qual tudo seria o alimento
Da vida de hospital
De moribundos.
Eu me recuso
A não poder ser doido como o velho a quem atiram pedras.
Eu me recuso a ser previsível como
Honestamente jamais poderia ser.
Eu me entrego a um tempo que mal se sabe
Por não ter em natureza como se saber.
Troveja, chove, e eu navego como o barco do cozinheiro
Bem fazendo meu prato na tempestade.

Wednesday, January 13, 2010

Nada hoje autoriza qualquer otimismo

Nada hoje autoriza qualquer otimismo.
A revolução não virá a tempo,
e homens esquecidos da razão de ser – a humanidade -
seguirão a fazer perecer tudo o que nos foi concedido,
luz, perdão, migalhas a que corpos se atiram inutilmente.
Meu pai me dizia que eu chorava à toa quando os tanques rolavam sobre Praga.
A revolução não virá a tempo,
e ninguém vai nos tirar dos apocalípticos escombros.
Chove tanto sobre o mundo,
e as lágrimas serão inférteis testemunhos de nossa desrazão.

Tuesday, January 12, 2010

Algaravia

Nem sei de onde vem
esta inopinada alegria.
Não sei se é este cheiro de terra depois da chuva,
a nuvem que me olha com cara de nuvem apenas
(achei que era Netuno, logo se desmanchou).
Não sei se é esta brisa benfazeja,
ou teu hálito a me visitar em doce nostalgia,
teus pés que se resolvem enfim em meus sentidos.
Não sei, e benza Deus que não entendo.
O mundo é a algaravia,
e não nunca cabe o decifrar.

Sunday, January 10, 2010

No meu jardim

No jardim da minha imaginação
Tem cravos, primaveras, buganvíleas,
margaridas, girassóis, damas-da noite,
violetas, anêmonas, avencas, azaléias,
magnólias, lírios, narcisos, tulipas, primaveras.
No meu jardim tem antúrios, alcachofras, mimosas,
alpínias, gardênias, gérberas, bromélias,
cactus, camélias, e mato, muito mato.
No meu jardim tem bichos espantosos, abelhas,
tem chuva e depois da chuva,
tem sol e tem lua e noite,
ciclames, frésias e lírios,
prímulas e helicônias,
amores-perfeitos (e imperfeitos), violetas.
Tem grama e chão onde deitar
para ouvir o coração da terra
que molha nossos corpos no orvalho.
Do meu jardim a relva às vezes sai desordenada,
vitalidade que pula das sementes e se espalha para o céu.
E tem besouros, vagalumes, louva-deus, taturanas,
beija-flores, sabiás na comunhão
de tudo que cultua a luz.
No meu jardim a sombra é apenas o descanso
e o alívio quando o calor queima.
No meu jardim agora é outono
e a claridade bate de banda
como de banda a gente anda quando anda em solidão.
No meu jardim tem minúsculas casinhas
onde habitam deuses invisíveis,
imagens que conduzem nossas vidas.
No meu jardim as coisas fenescem e morrem e retornam,
eternamente.
No meu jardim tem espinhos e a aridez da argila,
massinha de moldar em busca de seu molde.
No meu jardim há olhos que não dormem e brilham no escuro,
fantasmas e ninfas que moram nas fontes.
No meu jardim a água corre e a seiva jorra dos troncos
e minhocas hibernam até revolver a massa escura, aconchegante e quente e úmida que vai dar na superfície,
onde as esperam o risco da morte retorcida na secura ou o alimento.
Não tem artifícios, o meu jardim.
Nele simplesmente tudo está ou não está,
porque nele o olhar revela tudo.
Mas tem uma coisa que falta em meu jardim.
No jardim da minha vida
eu quero é molhar a sua rosinha.

Tuesday, January 05, 2010

Zero Hora

Não é mais hoje
e mal ainda é amanhã.
Venta pedras sólidas
e meu corpo esfacelado
se agarra a um poste
onde um cão mija, indiferente.
Está em minhas mãos,
está em minha memória,
estão em minhas chagas
estas lascas despregadas de tempo,
estas coisas que flutuam, baças,
opacidade de céu de neve.
Eu saúdo a súbita apreensão de mim.
A musa nasce, eu parto, velas enfunadas,
faróis dormentes em arrecifes,
a navegação pelo cheiro,
a vida exala alga e rosmaninho,
cozinha de nuvens, marcos onde restam atirados
o que sobrou e o que há por vir.
Zero hora em todos os meridianos,
nos significados todos,
e o jazz soa doce alheio a tudo.