Eu te dou: minhas bolinhas de gude,
a verde com uma lasca de banda,
a amarela rajada como teu olho (que nao sei se é o esquerdo ou o direito).
Você me dá: tuas caixinhas com
tuas cartas de amor,
teus santos todos,
os pedaços de chocolate que não estiverem debaixo de tua cama,
os retratos de teus cavalos,
os cavaleiros de toda a Távola Redonda,
uma jangada de papel para se chegar a bom termo a Ítaca.
Eu te dou: minhas noites insones, meus espantos,
o bauzinho com o camafeu do rosto que não conheço,
um prendedor de gravata de meu pai
(porque eu também sei ser sisudo),
o menino que olha de dentro da foto com as mãos pequenas postas sobre a mesa,
o globo do mundo e a lousa atrás com os meus saberes todos, os olhos que sobre ti pousam bonitos e alumbrados.
Você me dá: minha ilha onde no momento chove, meu silêncio e minha solidão,
tua canequinha de folha de flandres de tua infância descalça num canto de Pernambuco,
teu canivete para descascar as mangas,
as partículas brilhantes do solo onde pisas com teus dedos finos e espalhados.
Eu te dou: a tramela da porta para que nunca ninguém mais a tranque,
as estrelinhas de botar no teto que eu comprei um dia para até então dormirem sob o tempo nublado,
meu sopro que revela o céu no qual teu hálito habita.
Você me dá: o troquinho do sorvete,
as ninharias pequenas e as grandes,
os estalinhos de São João,
o luzir, as tempestades das quais tu tens tanto medo, os raios de tudo que em ti reverbera.
Eu te dou: todo o mato que em mim cresce sem controle,
meu desajuízo, minha intermitência e minha perenidade,
minhas águas que lavam todos os pelos que contém seu corpo,
meus sonhos que não conto para ninguem,
mas só para você eu conto porque moram em meus olhos que tu aquietas,
eu enfim feliz,
eu finalmente repousado.
Salvador, 19 de fevereiro de 2012