Friday, September 29, 2006


Resolvi publicar um conto escrito há muito tempo.

LONGE, PERTO



“Que odiosa manhã para se perder os óculos”, resmungou Orlando enquanto levantava a perna esquerda para logo em seguida colocá-la no primeiro degrau da porta de entrada de um ônibus que certamente não era aquele que o desejava todas as manhãs defronte do prédio cinzento onde no nono andar o esperavam uma escrivaninha de mogno e uma secretária.
Acostumado a abrir os olhos apenas no ponto onde o ônibus parava por instantes a mais do que nos pontos normais, e onde ele concluía ser o ponto final, Orlando dormiu durante quinze minutos com tortas de maçã, um batiscafo que se chamava Norma e procurava por escalopinhas num mar de doces de abóbora, e mais uma porção de cenas altamente culinárias incompatíveis com uma única xícara de café preto depositada em seu estômago em jejum.
Orlando percebeu que chegara ao ponto final, uma mensagem atravessou o meio do frango no meio do sonho e ele abriu os olhos para a realidade fosca e embaçada do lado de fora da janela do ônibus.
Dentro do ônibus não havia mais ninguém a não ser ele mesmo. Levantou-se desajeitamente, deu um gemido ao sentir um princípio de torcicolo por ter dormido com a cabeça totalmente encaixada entre o banco e a parte metálica de cima do encosto e caminhou lentamente até a saída. Não estava curioso nem espantado, parecia que sua cabeça ainda estava mergulhada na atmosfera culinária do sonho quando apertou os olhos para tentar focar um pouco a paisagem a seu redor e enxergou um senhor de roupa e boné azuis, que presumivelmente seria o chofer do ônibus.
- Senhor, poderia me informar onde estou?
- No jardim.
- No jardim o quê?
- No jardim, ora. Por que deveria ser jardim alguma coisa?
Orlando ia dizer que era pela força do costume, que havia vários bairros que eram jardim qualquer coisa, mas desistiu da argumentação, esfregou os olhos, tornou a apertá-los mais, um pouco mais para poder prosseguir na conversa. Ao abrir os olhos percebeu que não poderia continuar com suas perguntas com as quais conseguiria se orientar - o chofer tinha desaparecido.
Agora parecia não haver mais nada no seu campo de visão, por mais que esforçasse os olhos que estavam muito vermelhos e começavam a lacrimejar.
“Merda”, resmungou Orlando, tirando de um dos bolsos do paletó de homem prevenido um pequeno vidro de colírio, pingando-o lentamente, até os olhos estarem azulados e uma remela boiar na camada líquida. Neste instante começaram as preocupações. Como voltar, se não havia mais nenhum ônibus, e nem ao menos chofer ou ponto de partida? O que dizer no trabalho? O que dizer em casa? O que dizer agora, e para quem?
Orlando sentou-se no chão (era o único visível para tal propósito), não sem antes forrá-lo com um lenço bordado com suas iniciais, e acendeu um cigarro. Após absorver a horrível primeira tragada com gesto de pólvora pensou em fazer uma massagem nos músculos do pescoço, e que se isto não trouxesse resultados favoráveis para o seu torcicolo, pelo menos lhe daria tempo para começar a cogitar alguma coisa sensata.
- Bom dia, senhor. Sente-se bem?
Orlando virou a cabeça para cima num repente, esquecido do incoveniente de gestos repentinos em determinadas horas, resmungou um palavrão, esfregou os olhos e deparou novamente com a figura do motorista.
- Não tão bem. Onde posso tomar o ônibus de volta?
- Ônibus de volta? De volta para onde?
- De volta para o lugar de onde eu saí.
De uma maneira mais incrível que a comum, Orlando não perdia a calma.
- Desculpe, senhor. Eu não sei do que o senhor está falando. Eu nem mesmo tinha idéia de que se pudesse sair de algum lugar, ou mesmo que houvesse algum outro lugar.
Decidamente aquele não era o motorista do ônibus, se é que houvera algum ônubus, e como no caso dos jardins, Orlando novamente tendia para as generalizações fáceis ao pensar que toda pessoa com roupa e boné azuis tivesse que ser forçosamente um motorista de ônibus. Não precisou apertar os olhos novamente para perceber que o homem havia desaparecido. Na falta de esperanças ou cabinas telefônicas, Orlando deu outra tragada no cigarro, que já tinha se apagado, deixando na boca um gesto de cinzeiro sujo. “Merda”, resmungou Orlando. Cuspiu e atirou o cigarro longe (longe?perto?).

Wednesday, September 27, 2006

Poema de aniversário

Nada tão estranho
que a solidão não saiba.
Nada de novo, e as paredes revestidas
de um tempo
em si mesmo antigo.
Nada, nada, nada,
ninguém nem ao longe do abraço,
terno corpo, desfeita matéria,
rotos entretecidos de peculiar costura,
tudo que você nega e quer e abraça em sonhos,
tudo o que eu sou e tento me negar
para que você não mais me queira,
tanto esconderijo, figa e tijolo,
escorpiões, precária arena,
lenta morte, dor, juntas da alma,
e eu nem nunca sei porque te quero tanto.
Eu quero beber o orvalho das pétalas da sua flor.
Eu quero ver sua flor se abrir na comunhão mágica do amor.
Eu quero sentir a chuva que despenca da sua alma,
entrar em seu pequeno sol, redondo feito hóstia,
onde você me faz caber e me aperta e me acarinha
e me traz pra tão mais perto do que eu sou.
Eu quero navegar nas suas ondas,
rasgar suas águas com meu casco,
mar que me responde e me respinga,
eu que molhado me entrego totalmente a suas marés.
Eu quero suas marés, de lua nova e plenilúnio,
seu movimento que fustiga os corais
e traz à superfície as estrelas, as anêmonas,
eu quero me embrulhar em suas algas
e com elas me cobrir, na verde dança da fertilidade.
Eu quero sua fertilidade, sua dimensão toda de fêmea,
eu quero acolher os estilhaços das explosões
da sua intensidade.
Eu quero que eles me marquem o corpo,
me fustiguem de luz e aturdimento.
E que você se deixe em mim.

Monday, September 25, 2006

Estancar a umidade do desejo
com um dique feito de miséria,
afastar o tempo qual pele indesejada,
e trocá-la pela epiderme que apenas sobrevive,
jogar fora as cascas das frutas intocadas
em uma cesta onde as moscas apenas não apodrecem,
evitar o toque que anima o que se quer manter desanimado.
Rezar de joelhos à beira do leito onde mais uma vez a solidão habitará,
tentar trazer de volta os sonhos antes mesmo que o corpo adormeça e a alma sonhe
o que prefere na manhã se dissolver,
dedos a suar dentro de luvas
a evitar tudo que o contato não trará,
tênue gaze a cobrir feridas que não se enxerga
e que talvez nem valham mais a pena de existir.
(E tudo gira em espiral medonha
a conspirar contra a luz dos corações,
medo que transpira das entranhas
do súbito assalto aos sentidos.
Pequeno catamarã nas ondas,
fitando o gigantesco desafio de águas turvas,
meu barco, minha ilusão,
casca inútil contra as rochas das costas de mares infindos.)
Pulsar de coma induzido,
respirar só para estar vivo,
cercado de aparelhos
que a sensatez preferiria desplugar,
ventilar de balões entubados na garganta,
a leve brisa onde antes residia o ar.
Brincar de estar sozinho,
única estrela em céu único contra um pano azul
a refletir a dimensão dúbia do nada.
Insistir no canto
para ouvidos que há muito quedaram surdos,
plantar em sulcos áridos sementes que não vingarão,
apostar em jogo inconsútil
de números marcados por mau hábito,
jazer de barriga para o alto num inclemente sol
de um feriado sem aviso.
Deixar a plenitude se estender em território exígüo,
jardim em que as flores não atrapalhem
o que tortas raízes teimam em preservar.
Arder qual combustão do inferno
sem o calor da desejada insolação,
seco plenilúnio dos sentidos
em céu crestado de horror.
(Pálido exercício de voracidades mortas,
ambígüa moradia de fugazes contornos,
sutis tentativas de se gritar
o que se deve agora dizer em sussurro.)
Órbitas que saltam das esferas,
incredulidades de peixes batendo em paredes de aquários,
sem saber que ali finda a vida.
(j.e.m.)

Saturday, September 23, 2006


Anima

Meu amor persiste em permanecer
como a poeira no plissado de uma saia,
a repousar quando o corpo feminino se aquieta,
e se mexer quando as coxas se alternam em seus passos,
e as dobras do tecido semelham a própria medida do tempo.
……..

Eu não sei mais como vim parar aqui,
a alinhavar metáforas e cozer um tecido esgarçado
para que ele possa de novo ser aproveitável como a vida.
Eu só sei que vim parar aqui onde as as arquiteturas são a um tempo ruína e construção,
eu só sei que habito uma ruidosa cidadela cujos muros não mais a protegem;
eu só sei que as pernas das moças continuam caminhando nas ruas, enfiadas em ônibus,
trânsito, becos, ciladas, ladeiras,
e no frear repentino que revela
insuspeitadas intimidades.
Eu só sei que tudo se move, e muito,
e que eu, como a poeira, estou em um tecido que se abre e fecha,
até que alguma mão me espane e eu possa flutuar
no raio de luz que vem da minha janela.
……….

Até lá eu espero, ou não espero:
apenas passo o tempo todo,
e a cada vez passo de novo como um outro e dele me aproximo.
estou aqui e não estou,
estou onde o amor me manda estar e eu,
sem resignação, obedeço.
Não transijo, obedeço.
Eu sei ter medo do amor que se recusa.
Obedeço.
E meu ser se espalha como a umidade no box do banheiro.
Molha, escorre, seca,
torna a molhar, escorrer, secar,
todo dia, todo o tempo,
todas as dobras da saia que é minh’alma.

(josé eduardo mendonça)

Thursday, September 21, 2006

Danza de murte – fragmento

2
La noche, la calle, el farol, la farmácia,
Una luz mortecina y absurda.
Aunque vivieras outro cuarto de siglo
Todo seguirá igual. No hay salida.

Morirás, volverás a comenzarlo todo de nuevo
Y todo se repetirá como antes.
La noche, las ondulaciones frias del canal,
La farmácia, la calle, el farol.

(Alexander Blok, 1912)

Wednesday, September 13, 2006

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu
endereço
O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome
O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas
O amor comeu metros e metros de gravatas
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de
meus cabelos
O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite,
meu inverno e meu verão
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte

(João Cabral de Melo Neto)

Uma tosse tá carcomendo meu peito feito uma traça que se enfia pelas fibras dos tecidos abrindo caminho a dentadas.

Sunday, September 10, 2006


Como nos sonhos,
Detrás do rosto que nos olha não há ninguém.
Anverso sem reverso,
Moeda de uma só efígie, as coisas.
Essas misérias são os bens que o precipitado tempo nos deixa.
Somos nossa memória,
Somos este quimérico museu de formas inconstantes,
Esse montão de espelhos rotos.
(J.L. Borges)



Escrevo em um computador, mas meu coração está sempre em minha olivetti lexington 80, no tec-tec que irrompia madrugadas, eu garoto escrevendo meus contos, traduzindo os primeiros livros, sempre certo de que haveria um amanhã. Mas estas formas inconstantes, esse montão de espelhos rotos, e a constatação de que a olivetti, embora exista - tenho uma em meu quarto - não mais será batucada, de que aquela intimidade que jorrava de meu datilografar de oito dedos agora quer se examinar e reexaminar antes de sair de seu poço num baldinho puxado por uma corda tornada muito longa.

Thursday, September 07, 2006

É que me fiz prender por um entusiasmo de corpo e alma dos movimentos da vida e os vivo com uma intensidade pasmosa. Um dionisismo sem êxtase, uma confiança sensual, uma fé sistematizada em tudo e uma certeza permanente e perdoadora na imbecilidade do homem . E isso vibra em toda a minha obra. Sentimento trágico da vida? Sim: sentimento trágico da vida.
(Mário de Andrade, em carta a Alceu Amoroso Lima)

Wednesday, September 06, 2006

Agora sim, o céu despenca imoderamente, num período em que deveríamos colocar toalhas molhadas nas guardas das camas para nos protegermos contra a seca. Ou as gotas caem em tamanho desmesurado ou chove granizo, o que seria difícil acreditar, mas minha tentativa de verificação resultou em um braço ensopado assim que abri a porta do terraço do meu quarto. Sunt lacrimae rerum. E como.
E dói hoje, o tempo. E martela, insiste, como entidade que não quer ser roubada nem em um segundo e afirma seu poder sobre mim. E doem lembranças, rememorações, reminiscências, um passado vivo como ave que se esquarteja como pássado na vidraça em tentativa de auto-contemplação.
Melhor assim, com a tempestade. Como afirmação e secretária dos prenúncios. Rabixo de lagartixa que se remexe mesmo depois e além da lagartixa, assim são as lembranças, além de nossa vontade de decidir se as queremos ou não.

Monday, September 04, 2006


Venta, e venta, mas não há morros, e muito menos uivantes. Tudo aqui é uma planície num lugar muito alto, onde se cultiva mais que tudo a solidão.
As janelas batem e alimentam meus fantasmas, minha rígida máscara se desmancha e se estatela no quintal como os torrões de terra desta seca, branca poeira de uma alma branca, terra vermelha de uma alma rubra, reverberação de sonho.
Ainda

Ainda que a luz baixasse oblíqüa
sobre as formas da manhã
que incandescesse avermelhada.
Ainda que nuvens corressem
e nelas víssemos,
feéricas crianças aturdidas,
moças, bolas, elefantes,
pés sinuosos a pisar
o desparelho caminhar dos dias.
Ainda que a terra se abrisse
e tragasse a tudo e junto o livro
que mãos inexatas continuam a escrever.
Ainda que flores brotassem
de terrenos inexatos
e espalhassem seus aromas
no rarefeito ar de uma vida rarefeita,
mesmo tudo isso mal seria
um torto aval para que o tempo prosseguisse.
Ainda que teus lábios me amassem,
e teus olhos, e a doce carne da proximidade,
tua fala amorosa condensada
nas púrpuras palavras do teu sexo,
Ainda que teu seios alvos
despertassem em minha boca,
me convidassem à plenitude
de te saber minha.
Ainda que com teu pulso,
cada segundo mais intenso,
inventasses a coreografia
dos corpos que se bailam,
sôfregos gestos das mãos
em busca do gozo da vida.
Ainda que a ciência se desvanecesse
e tu restasses desnuda
em toda tua intrincada geometria.
Ainda que você trouxesse sempre
os espelhos mesmos
de um caleidoscópio vário.
Ainda que o martelar dos deuses
forjasse a arma que um dia iria me matar,
ainda assim eu te convidaria,
minha trama de tecidos tergiversos,
minha cama de lençóis disparatados,
minha alma de tantas e todas aventuras,
ainda assim eu te convidaria a partilharmos
os destinos que habitam nossas vidas.

Sunday, September 03, 2006

Tempo

O melhor de tudo terá sido sempre o tempo.
Tempo do azeite que desce pela folha
E do sal que dele se abebera.
Tempo do incenso que se queima e se desfaz
E espalha em fumo a morte doce e indolor.
Tempo que passa, trem fora do tempo,
Trilhos de aço forjados na estação.
Folha a cair no outono,
Sal, azeite,
O tempo todo miolo da vida.


Este poema escrevi em meus primeiros dias de Brasilia. Eu ainda nao sabia que seria seduzido pela cidade, o que na época era impensável, mas talvez já presentisse que aqui ganharia uma percepção diferente do tempo e, totalmente diferente, do espaço. Hoje, um ano e pouco depois, e anos luz daqueles primórdios, olho o horizonte pela janela de meu quarto/estúdio, percebo como foi dura a trajetória, afastado da minha São Paulo e principalmente de meus filhos e amigos, e reconstruo, em bases nem sempre firmes, que por vezes tenho de erguer como que do zero. O tempo, que ainda não esclareceu o quê vim fazer aqui e, mais, porque tenho aqui um projeto de futuro que oscila mas aos poucos vai tomando forma, como o azeite que arredonda e cai como uma pequena esfera sobre a folha de alface. E cai como uma lágrima de amor.

Saturday, September 02, 2006


antes tarde...


Há algum tempo, lancei meu blog, do qual cuidei uns três dias. Vou tentar de novo. Quero colocar neste espaços meus textos, fotos, observações, como forma de partilhá-los com vocês, meus leitores. Pra estrear, resolvi colocar um poema recente, de anteontem.

Talvez se eu acordasse no meio da noite
E me ejetasse do avião da vida
E sem para-quedas eu me projetasse
Para o solo de onde de qualquer maneira eu vim.
Talvez se eu repetisse a rapsódia
A jornada do herói, o cântico dos cânticos,
Um mísero passeio de motocicleta que fosse
Antes que minhas pernas se quebrassem como vidro.
Talvez se em frente ao espelho eu acordasse
Como quem acorda de uma oração dita aos deus dará
Quem sabe assim me recuperasse do que em mim ainda eu sou.
Talvez nada mais disso, e nem daquilo, ou daqueloutro,
Porque soam em mim como trombetas
Os guizos que hão de me atar à minha loucura.

Bsb 31/08/2006


Pronto. Simples, até agora. E vou acrescentar uma imagem, pra ficar mais bonito. A foto é do altar de uma pequena igreja que fica naquela rua do sindicato dos metalúrgicos, em São Paulo cujo nome me foge agora.
Choveu no meio da seca aqui em BSB, parou e chover, estou afônico e vou ao Boi do Seu Teodoro.